O debate sobre a representatividade dos negros no cinema e nas produções audiovisuais, de uma maneira geral, já existe há bastante tempo. Nos anos 60 e 70, o ator e cineasta negro Zózimo Bulbul já problematizava essa questão no Cinema Novo. Há apenas 35 anos o Brasil contou com a primeira mulher negra a dirigir um longa-metragem no país.

De acordo com a pesquisa Diversidade de Gênero e Raça nos Lançamentos Brasileiros de 2016, realizada pela Agência Nacional do Cinema (ANCINE) e divulgada em junho de 2018, dos 75,4% dos longas produzidos (e lançados comercialmente) por homens em 2016, apenas 2,1% foram homens negros. O número de mulheres é ainda mais alarmante: dos 19,7% das produções, todas foram de mulheres brancas. Nenhum longa metragem foi dirigido ou roteirizado por mulheres negras.

A pesquisa não aborda especificações quando o assunto é a representatividade da criança negra nestas mesmas produções, tanto como personagens das obras, ainda que direcionadas para os adultos, como também em produções direcionadas para a infância.

Hoje em dia, as crianças estão cada vez mais envolvidas com este universo e cada vez mais cedo começam a consumir conteúdo audiovisual, sejam filmes, séries, canais no Youtube ou desenhos animados em TV aberta, fechada ou pela internet. Isso, claro, reflete diretamente no que as crianças negras estão consumindo de audiovisual e, ainda, na forma como isso é absorvido por elas. Por isso é importante, além da preocupação com o que está sendo consumido, refletir sobre o que está sendo pensado e produzido para este público, especificamente.

Que tipo de material audiovisual está sendo feito que atenda também as crianças negras? Como essas crianças se veem quando vão a um cinema ou mesmo quando assistem a um desenho na TV?

Se a falta de representatividade entre o adulto negro é grande, nesse e em outros meios, quando falamos das crianças, partimos para uma questão ainda mais grave: é na infância que as crianças negras começam a se perceber no mundo e é nesse momento em que começam a sentir o racismo, não com uma consciência crítica do que está acontecendo, mas como uma sensação forte de deslocamento e de não-pertencimento. “Essa sensação aconteceu comigo desde o ambiente em que eu estudei, desde a primeira infância, porque eram espaços predominantemente brancos e as crianças negras eram eu, meu irmão e às vezes mais umas duas ou três, falando do total de alunos. Então você tem uma sensação de deslocamento, de perceber ‘eu não me vejo aqui’, mas não era uma coisa critica, não era totalmente consciente”, conta Joyce Prado, cineasta negra e diretora do curta-metragem “Fábula de Vó Ita” ao lado de Thallita Oshiro. O curta apresenta Gisele (interpretada por Tekka Flor), uma menina negra que sofre racismo na escola por causa de seu cabelo e aborda reflexões sobre representatividade e empoderamento.

O preconceito e a segregação começam na primeira infância e se estendem por todo período escolar, quando a representação do negro é mostrada com as imagens dos escravos. “Todo o período de formação estudantil dentro das escolas, por exemplo, quando a gente tinha aula de história eram os piores momentos, era quando se falava de escravidão”, lembra Joyce. É justamente na escola em que esse processo muitas vezes encontra terreno fértil para se desenvolver e é com a ausência de representatividade que ele se agrava, levando até mesmo e, em muitos casos, à evasão escolar.

Em 2017 o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) divulgou pela primeira vez indicadores de fluxo escolar na educação básica e os dados indicam que o índice de evasão escolar aumentou em todas as etapas do ensino desde 2014, passando de 6,8% para 8,6%, em 2016. Em entrevista ao G1 no início do ano, Cida Bento, fundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), afirmou que a ausência de conteúdos que reflitam a realidade dos estudantes negros na sala de aula pode ser um determinante no processo de evasão escolar por parte da criança e do jovem negro. Somado a isso, o questionário do Censo Escolar de 2015, aplicado pelo INEP, aponta que em um universo de 52 mil diretores de escolas, 12 mil não trabalham com projetos relacionados a temática do racismo, mesmo havendo (desde 2003) a Lei 10.639, que determina a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira na escolas.

É aí que entra o audiovisual na vida dessas crianças e jovens e onde ele pode fazer, verdadeiramente, a diferença, seja na escola, nas salas de cinema ou na própria TV aberta. O número de personagens negros em desenhos animados, por exemplo, ainda é pequeno e, em geral, quando aparece, é estereotipado.

SER A DIFERENÇA QUE SE DESEJA

Joyce cursou cinema por afinidade com o tema e a escolha foi determinante em seu processo de crescimento pessoal. Em 2014 foi contemplada pelo edital Carmem Santos Cinema de Mulheres, para realizar o curta “Fábula de Vó Ita” e junto com o projeto, nasceu a Oxalá Produções, pautada nesse propósito de trazer projetos de audiovisual e culturais relacionados à comunidade negra. “Da minha parte, o processo sensorial me leva a um processo de consciência que, por sua vez, leva a um processo crítico e que leva a questionamentos que me dizem de qual forma eu posso interferir desse contexto social. Dentro dessa ausência de personagens negras e negros para crianças, é a forma como estou agora”.

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Daisy Serena/divulgação

Nos desenhos animados faltam personagens comuns, crianças negras que não estejam inseridas na história por serem negras. Faltam histórias com negros como qualquer outra história corriqueira com brancos. E isso ficou claro para Joyce durante o processo de seleção da criança que faria o papel da protagonista Gisele, no curta. “Quando eles eram questionados sobre suas histórias e personagens favoritos, 90% dessas crianças não citavam personagens negros ou histórias protagonizadas por negros. Não faz parte do ambiente lúdico delas histórias com crianças negras; atualmente são poucos, mas em 2014 era ainda menos”, revela. Outra pergunta feita às crianças era sobre a escola e se falavam algo ruim sobre elas. “Imediatamente a resposta era em relação ao cabelo”, lembra Joyce.

E que criança quer se identificar com o bandido ou com o morador de rua?

Na TV aberta, a representação do negro contribui apenas para reforçar os estereótipos já existentes. Joyce dá o exemplo dos meninos negros no filme “Cidade do Homens”, por exemplo, que precisam conseguir dinheiro de qualquer jeito e não precisa ir muito longe para exemplificar: “A própria temporada anterior da Malhação tinha uma criança negra e ela era um morador de rua e flanelinha. Eu sinto realmente que ainda temos algumas décadas pela frente pra conseguir produzir um audiovisual de conteúdo infantil mais compromissado com as minorias, com as crianças negras e com narrativas que não as coloquem em papéis estereotipados”.

Os personagens negros não precisam ser moradores de rua, flanelinhas, empregadas; eles não precisam estar sempre lidando com uma situação relacionada ao fato de serem negros. “O mercado busca colocar o realizador e o profissional negro dentro de uma caixinha e isso é muito negativo, porque precisamos construir experiências para além de produtos audiovisuais que dialoguem diretamente com o nosso perfil”, analisa.

Essa estereotipificação acontece em muitos casos porque os profissionais que estão dando vida a esses personagens não são negros e porque falta diversidade entre as pessoas que estão à frente dessa produção audiovisual. “É muito cômodo você não dar complexidade a esses personagens; é muito cômodo não precisar pensar neles e manter a ignorância com relação a esses perfis de personagens. É cômodo você não precisar entender as questões raciais, de gêneros e sociais, e ao mesmo tempo você não querer estudar. Você não quer compreender, nem conversar com as pessoas que integram essas minorias, mas você quer escrever a respeito do que elas sentem e do que elas são nesse mundo”, afirma Joyce, que também integra a Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro (A.P.A.N.), mais uma frente de atuação e reivindicação para ações afirmativas e políticas de incentivo ao audiovisual negro, seja aumentando a presença de profissionais negros e negras dentro da produção audiovisual, seja na composição de equipe, ou nos editais.

Ancine e as ações afirmativas relacionadas a gênero e raça

No início de 2018, após ouvir as demandas de entidades e associações do setor audiovisual e levando em consideração o diagnóstico feito pela ANCINE sobre gênero e raça no audiovisual brasileiro, o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual (CGFSA) aprovou algumas mudanças no edital de Concurso Produção para Cinema 2018, lançado no dia 19 de março, envolvendo a adoção de cotas para a seleção dos projetos inscritos. São destinados R$ 100 milhões do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) a projetos de longas-metragens independentes de ficção, documentário ou animação.

A proposta é que pelo menos 35% dos valores investidos nos projetos selecionados deverão ser dirigidos por mulheres ou mulheres transexuais/travestis, e pelo menos 10% desses valores para diretores(as) negros(as) (pretos e pardos) e indígenas. De acordo com Christian de Castro, vice-diretor da ANCINE, na ocasião da divulgação do pacote, “esse é um primeiro passo para se pensar medidas de ampliação da representatividade de mulheres, negros e indígenas no mercado audiovisual brasileiro”. Clique aqui para acessar o novo edital.

Quer conhecer mais sobre produções audiovisuais que apresentem a criança negra como protagonista? Selecionamos 15 produções (não só brasileiras):

clique aqui para conferir.

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