Em tempos de intolerância e do avanço do fascismo no Brasil, o documentário “A Primeira Pedra”, de Vladimir Seixas, representa o país no Emmy Internacional 2019, premiação que elege as melhores produções audiovisuais televisivas do mundo e será realizada no próximo dia 25, em Nova Iorque (EUA). O filme concorre como Melhor Documentário, investiga a crescente onda de linchamentos no Brasil e aprofunda discussões sobre direitos humanos e racismo estrutural da nossa sociedade.

A ideia do filme parte do desejo de expor o aumento das práticas de linchamentos e a banalização da intolerância, principalmente nos últimos anos. Segundo o diretor, o filme surge para “dimensionar a barbárie que esses atos cotidianos expressam e disputar a desconstrução das bases motivadoras dessa violência”.

O livro “Linchamentos – A Justiça Popular no Brasil”, do sociólogo brasileiro José de Souza Martins, é uma das referências da obra, por trazer uma investigação aprofundada do fenômeno a partir da catalogação de mais de dois mil casos, apontando substratos encontrados na barbárie dos linchamentos. Segundo ele, todas as evidências são de que o Brasil é o país que mais lincha no mundo. “O número de linchamentos no Brasil hoje chega a um por dia e um milhão de brasileiros já participaram de algum linchamento nos últimos 60 anos”, afirma em entrevista ao filme. Os números assustam, mas diante do momento vivido no país, talvez não surpreendam muitas pessoas.

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Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional

Em 56 minutos, o documentário consegue abordar casos emblemáticos de linchamentos no Brasil, ouvindo vítimas e familiares, além de trazer respaldo de especialistas na área de psicologia, psicanálise, direitos humanos, pesquisadores, advogados e professores, como Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional, e a psicanalista Maria Rita Kehl.

Por meio de um resgate histórico, a produção apresenta as origens do linchamento na sociedade  investiga as entrelinhas que permitem que os atos aconteçam com cada vez mais frequência, mostrando como a motivação da prática evoluiu para algo cada vez mais racista, principalmente no Brasil. 

Mais importante do que expor a gravidade de todos os casos expostos e não expostos na obra, é entender o que motiva, o que é feito com relação a isso e como muitos cidadãos, muitas vezes autodeclarados “cidadãos de bem” e em sua maioria conservadores, estão sujeitos a serem tomados por esse senso de justiça com as próprias mãos.

O chamado ‘cidadão de bem’ apareceu como personagem-chave. Encontramos em alguns casos, por meio de relatos e reportagens, pessoas capazes de linchar em nome de uma concepção de bem essencialmente conservadora, fundamentada no discurso da falência das instituições públicas brasileiras”, revela Vladimir.

Este é um dos grandes pontos do filme, que não se propõe a apontar dedos e culpados, mas a tentar entender de fato o momento que estamos vivendo e se aprofundar nos microfascismos cotidianos que atravessam todos nós.

Não se trata exatamente do fascismo historicamente remetido a Hitler ou Mussolini e que mobilizou multidões, mas o fascismo que nos penetra cotidianamente, que naturaliza o ouvido quando algum transeunte pragueja ‘tem de matar mesmo!’, que naturaliza as críticas correntes em relação aos diretos humanos. Em suma, o fascismo que evidencia que o inimigo está dentro de nós, mesmo que não cheguemos ao ato de linchar”, explica Vladimir.

O filme, vencedor do 8º DOC Futura, é uma coprodução do Canal Futura com a produtora Couro de Rato e está disponível no Futura Play. A produção concorre com ”Bellingcat – Truth in a Post-Truth World” (Países Baixos), Louis Theroux’s Altered States” (Reino Unido) e “Witness: India’s Forbidden Love” (Catar). 

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